A montanha está, por definição, mais perto do céu. Deve ser isso que atrai tanta gente à procura de chegar cada vez mais alto, de alcançar as estrelas, fugindo à condição rasteira do ser humano. O preço a pagar pelo voo é o risco da queda. Lá em cima estamos sujeitos aos elementos sem clemência. Na madrugada de 2 de Outubro não parei para pensar nisso, parei porque já não conseguia continuar.
A dada altura, senti que a temperatura corporal caía à bruta e comecei a tremer sem controlo. Sentia-me muito fraca e tinha os olhos a fechar. Tinha avançado com extrema dificuldade até aos 3700 metros de altitude, na expectativa de encontrar o PC10. Quando não o encontrei, vi as coisas muito negras. Sentei-me no caminho, abraçada às pernas. Não sabia como sair daquela alhada. O meu fiel compagnon de route envolveu-me na manta térmica e tentou aquecer-me. Passado pouco tempo, surgiram dois atletas que nos garantiram que o posto de controlo era já daí a 500 metros. Um deles, alemão, emprestou-me um casaco e isso deu-me a força necessária para chegar até à tenda de apoio. Assim que entrei, enrolaram-me num cobertor e na manta térmica à laia de chouriço Ferrero Rocher. Bebi o melhor chá da minha vida e caí num colchão, onde fiquei a tiritar durante um par de horas até conseguir aquecer e dormir um pouco.
Duas luzes piscavam no fundo da consciência nessa altura: a primeira dizia-me que não iria pôr a vida em risco, os meus filhos precisavam de mim. Se isso significava parar até aquecer o suficiente para atacar a parte mais difícil da prova, fá-lo-ia a qualquer custo; a segunda era a certeza de que iria fazer tudo ao meu alcance para acabar a prova dentro do tempo limite. O investimento pessoal que fiz nos últimos meses tornava a desistência numa impossibilidade.

Amanheceu. Comemos e partimos para a descida dos infernos. Nem a imagem bidimensional nem os números lhe fazem justiça: 8,5 quilómetros com 2000 metros de desnível negativo espremidos num carreiro estreito, aos ziguezagues, feito de calhaus soltos a chamar pelas quedas em série. Guardámos os bastões e não me envergonho de dizer que o meu traseiro deu um contributo valioso nesta etapa. Passo a passo, no que pareciam ser horas sem fim, chegámos ao vale de Imlil.


Trocámos de roupa e almoçámos como deve ser em Imlil. É impressionante a força anímica que podemos retirar de uma t-shirt lavada. Estava cumprido o último posto de controlo e a parte mais técnica mas ainda faltavam duas grandes subidas. Foram feitas com a técnica habitual do morde a bochecha e não vacila ou, mais bonito em francês, doucement. Exaustão é palavra curta para descrever o que sentia ao fim de dia e meio de prova. A organização do UTAT tem veia artística e em boa hora se lembrou de colocar duas grandes bandeiras de Marrocos no final da última subida, na garganta que antecede a chegada a Oukaïmeden. Vê-las à distância de uns 3 quilómetros é uma sensação agridoce.


Por esta altura o staff já nos conhecia pelo nome. Foram inexcedíveis em simpatia e incentivo. Tirámos fotografias juntos e descemos na bisga pela colina abaixo, até à meta. Estava feito o UTAT, a minha primeira prova de três dígitos.

Foi uma loucura estrear-me ali na distância. Um deserto inteiro de areia a mais para o meu camião. Mas é bem verdade que estes desafios se vencem sobretudo com muita cabeça. Faltou-me esse elemento na escolha do vestuário mas sei que fiz muitas outras coisas certas. Treinei criativamente. Geri o esforço, ouvi o meu corpo, não vacilei. Prossegui com alegria do primeiro ao último quilómetro, mesmo quando as coisas correram mal. Mas é claro que o mérito não foi só meu porque nunca fui sozinha. Fui com a mochila do António. Com o impermeável da Tyna. Com os produtos farmacêuticos da Isabel. Com as palavras certeiras do Pedro e do Didier. Com o abraço de todos os amigos que partilharam comigo este sonho. Com a graça de Deus. E sem dúvida que o melhor desta prova foi quem esteve lá sempre comigo. A oxitocina não conta como doping, pois não?
